SMS, visitas a túneis e conversas serviram-lhe de inspiração. Não separa o gosto pela escrita da leitura e revela-nos, sem hesitações, que os seus livros retratam pessoas. Vamos conhecer os bastidores da escritora Carla M. Soares e um pouco dos seus livros!
O que lhe deu vontade de escrever livros?
Suponho que o gosto pela escrita tenha estado sempre comigo, mesmo antes de escrever de forma regular, mas, na verdade, ele nasceu da leitura.
Não imagino um escritor que não tenha sido e não seja, antes de tudo, um leitor ávido.
Por exemplo, escrevi o meu primeiro livro, de fantasia (que não foi nem será publicado, calculo), numa fase em que lia muito este género, tinha relido Tolkien e LeGuin… Quis saber se consiguia levar uma história até ao fim e escrevi cerca de 300 páginas. Nunca mais parei, mas a leitura é a base de tudo, sempre.
Onde encontra a inspiração?
O meu primeiro livro publicado (que já foi “descontinuado” pela editora) inspirou-se num sms longo que recebi, que me irritou e me fez perguntar “Mas já ninguém escreve cartas?”. Escrevi uma, entre primas, que foi a primeira coisa – embora não o primeiro capítulo – desse livro passado em meados do século XIX. Diria que todo o livro cresceu em redor dela.
O Cavalheiro Inglês nasceu da visita aos túneis das instalações eléctricas do Palácio de Monserrate. São da época da sua construção, e fiquei curiosa acerca das primeiras casas com instalação eléctrica e canalizações de raíz em Portugal. No fim, esses aspectos acabam por ser detalhes no livro, mas o primeiro capítulo que escrevi foi em Monserrate, com uma referência muito breve à electricidade.
Tenho uma ideia, ainda não concretizada, que surgiu da conversa com a empregada de mesa de um restaurante onde fui com amigas.
Ou seja, a ideia inicial para um livro, a semente, pode surgir de qualquer lado. Até de outro livro.
O que retratam os seus livros?
Retratam pessoas. Não hesito nada nesta resposta.
Mesmo quando também espelham uma época, o que acontece com quase todos, de uma forma ou de outra o passado está lá, gosto de História, eles são primeiro sobre gente: mulheres e homens, famílias, amigos, amores. Apercebi-me de que há temas recorrentes, como a situação das mulheres, a família, por vezes as questões políticas e/ou sociais de um determinado momento na História (depende muito do tipo de livro que escrevo), a desigualdade, a viagem… nalgum ponto do livro há sempre uma viagem, o que é curioso, porque, embora goste de viajar, não sou muito arrojada nos meus projetos.
Que eventos da sua vida a marcaram e, por consequência, se refletem no que escreve?
Suponho que a questão da viagem possa ter nascido na minha infância, ter ficado comigo sem me aperceber: vim de Angola com três anos, fugida da descolonização omo tantos outros. Sou do Sul de Angola, de Moçâmedes, a Guerra levou muitos anos a atravessar o Namibe, mas acabamos por ter de vir. E, sem ter nenhum acontecimento concreto que o justifique, talvez por ter recebido uma educação feminista, acabo por interessar-me instintivamente pela luta das mulheres pela igualdade ao longo do tempo. Nunca ouvi esta palavra na infância, feminismo, mas em minha casa havia uma divisão natural de tarefas e fui criada para ser independente, trabalhar sempre, pensar por mim própria.
E, não sendo nenhum acontecimento marcante, a escrita começou de forma regular na minha vida numa altura em que senti uma necessidade de mudança, porque o trabalho e a família me tomavam o tempo todo e começava a sufocar.
Sou professora e tenho dois filhos, na altura muito pequenos. Fui estudar, fazer Mestrado e deu-se a espécie de milagre que foi conseguir equilibrar tudo, família, trabalho, estudo e escrita.
Aprendi, nessa altura, que quanto mais temos para fazer, mais o tempo cresce. Por vezes, não temos quase nada e ele parece que não chega… Está tudo em nós.
Hábitos de escrita: Onde escreve? Em que momento do dia? Quanto tempo dedica à escrita?
A minha profissão, que as pessoas tendem a julgar que me deixa muito tempo disponível, é bastante absorvente e não me permite ter uma rotina de escrita ou um número fixo de horas para lhe dedicar à escrita, porque trago muito para faze rem casa e, por vezes, a exaustão vence-me.
Antes do confinamento, porém, costumava reservar pelo menos as manhãs de Sábado e Domingo para isso, e adorava fazê-lo numa ou noutra pastelaria próxima de casa, onde me sentia confortável. Algumas chávenas de café, a bolha do ruído alheio e o facto de estar ali apenas para isso, sem as distrações da casa, sem ninguém que me interrompesse, tornavam essas horas muito produtivas.
Por vezes, fazia-o noutros dias, de manhã ou de tarde, conforme o meu horário e o trabalho que tivesse. Com o confinamento, esse costume interrompeu-se, o trabalho como professora em E@D multiplicou-se e a produtividade na escrita caíu a pique. Tenho escrito pouco e até a revisão de um original com publicação planeada (mas condicionada pelos resultados deste confinamento) se tem arrastado.
Improvisa à medida que escreve ou conhece o fim antes de escrever?
Nem sempre sei que caminho vou seguir quando começo uma história, mas, a partir de certa altura, o livro já está todo na minha cabeça e tenho habitualmente uma ideia do fim que quero para os acontecimentos ou personagens.
No entanto, sou muito permeável à mudança. Por vezes, o livro é planeado com cuidado, como aconteceu com O Cavalheiro Inglês ou O Ano da Dançarina (há acontecimentos reais e elementos de época que condicionam a narrativa, sobretudo no Dançarina), mas acabo quase sempre por improvisar na parte mais ficcional, mudo de direção, sigo caminhos que, por vezes, as personagens ou as pesquisas intermédias sugerem.
O Limões na Madrugada, por exemplo, foi sendo escrito ao ritmo da minha vontade, e a certa altura a própria história levou-me a mudar o percurso, o desfecho e o segredo que tinha planeado.
O velhinho (e descontinuado) Alma Rebelde, por exemplo, nasceu como tragédia, ia acabar muito mal, depois passou a ter um fim em aberto, com os protagonistas desaparecidos no mar alto, e depois, sob ameaça de estrangulamento de uma amiga a quem pedi para ler o original, acabei por dar-lhe um fim mais simpático!
Qual é o seu livro preferido?
Não sou capaz de responder a essa pergunta.
Sou uma leitora eclética e nem sequer tenho um género preferido. No entanto, há livros que guardo como excelentes memórias de leitura. Cem Anos de Solidão de Garcia Marquez, A Tenda dos Milagres de Jorge Amado, A Cidade e as Serras do Eça, Servidão Humana de Maugham, A Casa dos Espíritos de Allende, O Coração das Trevas de Joseph Conrad, Jane Eyre de Charlotte Bronte, e Wuthering Heights de Emily Bronte, Brave New World de Huxley, The Earthsea Quartet de LeGuin, A Filha da Floresta de Marillier… Apontar estes é uma injustiça para uma infinidade de outros, que era capaz de apontar daqui a pouco, se tivesse de repetir a resposta.
Costumo sempre dizer que o meu livro favorito foi o último que li e é o próximo que vou ler, mesmo que nem sempre goste do que leio…
E qual dos seus livros prefere?
Essa é uma pergunta a que não sei responder.
A minha tendência é para mencionar o mais trabalhoso, que foi O Ano da Dançarina, porque me deu muita satisfação terminá-lo e adoro a história, mas a verdade é que eles são todos diferentes. Também gosto muito do Limões na Madrugada, que é o mais contemporâneo, de um outro que esteve publicado apenas em ebook e neste momento não “existe”, o Chama ao Vento, que se passa parcialmente durante a Segunda Grande Guerra, em Lisboa, e um livro de fantasia ao qual regresso sempre que preciso de conforto, que se chama A Grande Mão. É apenas um dos vários que não estão publicados.
E, por fim, uma breve mensagem de incentivo para quem gosta de escrever e pretende publicar.
Deixo uma mensagem de incentivo e um aviso, e começo pelo aviso: não se deixem tentar pelas editoras que vos pedem dinheiro para publicar o vosso trabalho.
Eu resisti, mas conheço vários autores que publicaram nessas editoras cheias de promessas e depois se arrependeram, porque acabaram com caixotes de livros em casa, que eles próprios tiveram de vender. A não ser que tenham alma de vendedor, fujam disso. Investiguem as editoras tradicionais, para saberem quais estão mais recetivas ao vosso tipo de história, trabalhem-na muito, passem-na pelo crivo dos vossos amigos mais honestos, e depois enviem o original e encham-se de paciência. Algumas nunca vão responder, outras vão dizer-vos que não. Vai ser preciso persistência, resiliência, resistência ao desapontamento e encontrar algumas formas de manter o ego saudável, mesmo quando conseguirem a publicação, porque o caminho não termina aí. O livro pode vender muito, ou vender pouco, e nem todos vão gostar dele…
É preciso pôr acima de tudo o prazer da escrita, isso é o que vale a pena, fazer o nosso melhor e sermos absolutamente honestos connosco próprios. O resto é persistência e sorte.
Muito obrigada, Carla!
Para continuarmos a acompanhar o trabalho desta autora:
IG: @soarescarlam
BLOGUE: Monsters Blues
1 Comment