Não fosse uma perseverante vontade de contar histórias, hoje não estaríamos a ler o primeiro livro da nossa convidada desta semana, Lénia Rufino. Encontra inspiração em tudo, desde pessoas reais a leituras que faz, assim como numa fotografia conforme nasceu O Lugar das Árvores Tristes. Por agora o lugar é, aqui, nesta alegre entrevista!
O que te deu vontade de escrever livros?
A vontade nunca foi de escrever livros, mas sim de contar histórias.
Não vejo a edição de um livro como um fim, mas sim como um meio para levar mais longe as histórias que quero contar.
Claro que, a dada altura, o sonho de publicar livros começou a impor-se, mas porque este era o formato em que eu achava que ia chegar mais longe, de forma mais séria e que iria perdurar no tempo. Mas, voltando atrás, o que eu comecei a sentir por volta dos meus 10 anos foi que escrever era o que me permitia contar as histórias que eu já tinha dentro de mim. E tornou-se claro que esse era o meu sonho.
Onde encontras inspiração?
Em tudo, na verdade.
Posso inspirar-me em pessoas reais, em sítios que me são queridos (ou que me causam um incómodo tremendo), numa conversa que ouço no café, numa viagem, num filme ou até noutros livros. Às vezes, surgem-me frases completamente aleatórias, saídas não sei de onde, que dão início a coisas completamente díspares. O meu livro, por exemplo, nasceu de uma fotografia tirada por um amigo meu, à porta de um cemitério. Aquela fotografia transportou-me para o primeiro funeral a que eu assisti e foi a partir daí que me surgiu a história.
O que retrata o teu livro?
O meu livro conta a história de uma rapariga que um dia percebe que não sabe como é que morreu uma das mulheres da aldeia onde ela mora. Esta rapariga, a Isabel, tem o hábito de passear no cemitério e aquilo que começa por ser uma pergunta bastante simples e inocente acaba por se revelar uma coisa bastante mais profunda do que ela imaginava. À medida que ela procura as respostas para aquela pergunta, acaba por descobrir muito mais do que isso – acaba por conhecer a história da sua mãe e da sua própria família, e também daquela comunidade fechada, antiquada e muito limitadora das liberdades individuais.
Mais do que a história de uma família, o meu livro traça o retrato de uma época (o final dos anos 60 e início dos anos 70), no interior do Alentejo, onde a opinião dos outros é o elemento que acaba por moldar as decisões que vão sendo tomadas e que condicionam de forma absurda uma série de vidas.
Que eventos da tua vida te marcaram e, por consequência, se refletem no que escreves?
No caso deste livro, há uma das minhas primeiras memórias de infância: o prmeiro funeral a que assisti.
Na altura, lembro-me de achar aquilo tudo muito estranho, mas apaziguador, ao mesmo tempo. Outra coisa que marca muito a minha escrita (em várias vertentes, na verdade) é o facto de eu ser filha única. Cresci sem uma companhia constante, e os livros acabaram por ocupar esse lugar. Portanto, por um lado há este amor pelas histórias, por outro o tempo para as escrever e uma espécie de solidão que encontra companhia assim, nas palavras (tanto nas dos outros, como nas minhas).
Uma coisa muito presente na minha escrita é o meu fascínio pela mente humana. Interessam-me imenso os comportamentos desviantes enquanto potenciadores de situações extremas, com as quais é difícil lidar. Tento trazer isso para o que escrevo – e é por isso que não escrevo coisas felizes e levezinhas, porque acredito que a complexidade de uma personagem com uma personalidade conturbada é muito mais interessante do que as histórias cheias de finais felizes.
Hábitos de escrita: Onde escreves? Em que momento do dia? Quanto tempo dedicas à escrita?
Eu sou caótica. Tenho dois filhos que já não são pequenos (13 e 10 anos), mas ser mãe solteira, ter um emprego a tempo inteiro e as responsabilidades todas associadas fez com que o meu tempo para escrever fosse um recurso escasso. Foi por isso que este livro demorou quatro anos e meio a ser escrito, e depois precisou de mais quatro anos para chegar cá fora.
Contudo, à medida que fui tendo mais projectos de escrita, comecei a disciplinar-me mais.
Recentemente, descobri, através de uma amiga, um grupo que se reúne, via Zoom, em quatro horas diferentes todos os dias (são sempre 8 da manhã num dos pontos das reuniões), durante uma hora, para escrever. Isto tem sido fabuloso porque me “obriga” a comprometer-me comigo mesma e a focar-me apenas na escrita, durante aquela hora. Aliás, estou a responder a estas perguntas durante uma dessas sessões! (Espreitem em https://londonwriterssalon.com/)
Não escrevo ficção todos os dias, mas é esse o meu objectivo para os próximos tempos – até porque tenho mais um livro para escrever -, ou seja, o que estou a tentar fazer é precisamente reservar uma ou duas horas por dia para a escrita. Nunca traço objectivos em relação ao número de palavras, porque tanto pode acontecer escrever apenas 100 numa hora, como escrever um capítulo inteiro. Depende muito do ” flow” com que estou a escrever e de quão bem já conheço a história que estou a desenvolver.
Improvisas à medida que escreves ou conheces o fim antes de escrever?
Em relação ao meu livro, senti necessidade de estruturar a narrativa por capítulos assim que comecei a escrever.
O meu filho mais novo tinha quase um ano, eu sabia que ia demorar imenso tempo a escrever o livro e também sabia que era muito provável que passasse meses sem pegar no manuscrito. Portanto, a probabilidade de me esquecer de coisas importantes era enorme. Depois, à medida que fui escrevendo, o texto quase ganhou vida própria. Houve coisas que estavam na estrutura inicial que caíram por terra e outras que não estavam mas que surgiram naturalmente. Eu sabia como queria que o livro acabasse, mas deixei que a história me surpreendesse a mim também.
Por norma, quando escrevo contos, sei apenas o ponto de partida. Deixo que o texto flua à medida que o escrevo e adoro esta liberdade porque é quase como se também eu estivesse a ler aquela história enquanto a escrevo – ela ainda não existe completamente desenhada na minha cabeça, é quase como se eu estivesse a ler um livro do qual apenas conhecesse a sinopse.
Qual é o teu livro preferido?
Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago é o meu escritor preferido.
Neste livro, ele constrói um mundo que, até ao ano passado, eu achava completamente distópico (já li o livro há muitos anos e achei sempre que aquilo nunca poderia acontecer… até termos entrado numa pandemia que mudou o paradigma por completo). A forma como Saramago nos mostra quão baixo pode o ser humano descer quando o que está em causa é a sua própria sobrevivência é avassaladora. Depois, amo a forma como ele trata a nossa língua com um respeito imenso, recorrendo apenas ao que é essencial para ele. Às pessoas que dizem que Saramago não sabe usar pontuação, eu digo que é exactamente o oposto disso: ele é de tal maneira exímio na forma como a utiliza que precisa apenas de dois sinais (os pontos finais e as vírgulas) para fazer com que tudo funcione.
E, por fim, uma breve mensagem de incentivo para quem gosta de escrever e pretende publicar.
O melhor conselho que me deram é o que eu dou sempre também: leiam.
Leiam muito, escrevam mais ainda.
E, na altura de publicar, não sigam por atalhos nem vão por caminhos duvidosos.
Fujam da auto-publicação e das vanity publishers, dediquem-se a conhecer o mercado, descubram que editoras publicam o género do livro que escreveram e, mais importante ainda, quais as que publicam novos autores.
Falem com escritores já publicados (que, por norma, são muito mais acessíveis do que se pensa) e lutem pelo vosso lugar. Acima de tudo, saibam que ninguém escreve como vocês, que a vossa história é única e irrepetível. O caminho tende a ser longo, mas vale mesmo muito a pena. E, se precisarem de mim, estou sempre à distância de um email ou de uma mensagem no Instagram.
Beijinhos e obrigada!! Adorei a entrevista!
Muito obrigada, Lénia!
Para continuarmos a seguir o trabalho da autora Lénia Rufino:
Blog (que está a ser migrado para o site): www.notsofastblog.com
Site (ainda em construção): www.leniarufino.pt
Instagram: @lenia_rufino