Novamente este rosto. Acho que estou a ser seguida…
Estes últimos dias, os afazeres parecem novelos de lã emaranhados num só rolo que se torna cada vez maior e mesclado de cores. Os dias passam, acelero-me qual máquina de tricotar industrial, mas não consigo desenrolar um único fio.
Acordo esfomeada e, antes de mais, situo-me no espaço e no tempo ou no tempo e no espaço, não sei bem qual a ordem. Ainda ligeiramente desorganizada, dirijo-me à cozinha onde me apresso a preparar o pequeno-almoço que, depois, devoro na sala. Em cima da mesa encontro vestígios da noite anterior: os meus óculos e o livro do momento que acabam sempre por me fazer companhia . Tiro um pequeno tempo para agradecer o poder desfrutar da benção de mais um dia e lá vou eu.
De barriga e mente saciadas pelo pequeno repasto e leitura, respetivamente, desloco-me ao escritório para visualizar o plano de tarefas que deixei traçado no dia anterior. Quando se é free-lancer, a agenda nunca é igual de uma semana para a outra. Há blocos de trabalho onde interajo com os alunos e blocos de trabalho onde interajo com ninguém. Logo depois, com a mente a fervilhar sobre o dia que me espera, a casa de banho recebe-me fria e impulsiona-me a não perder um momento.
Neste vai e vem, mal vejo o meu reflexo nos diferentes espelhos da casa por onde vou passando. Um gesto voluntário, válido e veloz, sem inconsciência. Sei o rosto da exaustão e não me apetece, nem a espessura de uma agulha, encará-lo! Aliás, a maior corrida tem-se revelado a da fuga do cansaço, do acumular de alvos diários, do dizer “sim” a tudo, do desconhecer “não parar”. Por outras palavras, estou a explorar na primeira pessoa a diferença entre estar ocupado e ser produtiva.
Volto a evitar o espelho. Novamente este rosto. As olheiras a ganharem espaço às bochechas, a tez da pele a ganhar palidez. Novamente este rosto de cansaço. Afinal, isto de gerir o nosso próprio tempo requer um equilíbrio contínuo. É precisamente essa constância que achava que já dominava, mas meia volta, recaio no desequilíbrio da mesma.
Por fim, já desperta em todos os sentidos, sento-me no computador que liguei entre duas ações. É provável que tenha sido na viagem da cozinha para a casa-de-banho, depois da primeira refeição da manhã e antes do banho. Eis o primeiro entrelaçar de trabalhos do dia a que outros se seguirão. Entre duas aulas estende-se roupa, para mais tarde, aproveitar uma curta pausa e a apanhar.
Já estou sentada há uma hora e a lembrança do almoço chega-me. Por que será? Aproveito o fim da frase para ir descongelar a próxima refeição e auxiliar-me de uma peça de fruta para adiar a fome. Do escritório para a cozinha menos um espelho que olho, no entanto, novamente este rosto.
O dia passa-se entre as idas e as vindas deste pequeno grande mundo que se tornou a minha casa, morada, trabalho, restaurante e lazer. A meio da tarde, mais uma ida à cozinha para planear o jantar. Escrevo, preparo aulas, leio, dou aulas, estendo roupa, respondo a mails, agendo pagamentos, escrevo, peço fatura, preparo aulas, dou aulas, apanho roupa, telefono a serviços, leio e recomeço.
Novamente este rosto de cansaço sem brilho, o meu. Acho que estou a ser seguida pela pressão que me inculco de ter de ser produtiva todos os dias. Não me quero ver assim. É importante fazermos o que gostamos e gostarmos do que fazemos. O reflexo disso será sempre reflectido no nosso bem-estar.
Por isso, amanhã decidi aliviar a pressão e, se conseguir, ao fim do dia, olho-me ao espelho para ver novamente o meu rosto, mas desta vez, de satisfação.
Olá, Ana Gui!
Que conto incrível! Adoro como usas os nossos inícios sugeridos para escrever sobre a vida. Fá-lo com mestria! Identifiquei-me em tantas passagens! Esta vida de freelancer é um verdadeiro desafio em vários momentos, mas procuramos no nosso interior as forças para fazermos o que gostamos.
Lindo conto! A tua escrita é fluída e muito empatizante. Obrigada por teres participado, esperamos ver-te no último tema do desafio! 🙂
Um grande beijinho,
Elisabete.
Olá Elisabete! Muito obrigada pelas tuas palavras! Isso dá-me mais alento para continuar a exprimir-me por escrito. 😉
Um beijinho.
Que incrível! Como me identifiquei com o eu conto, ser freelancer é uma luta diária e retrataste muito bem a rotina diária, mas é o que gostamos de fazer, certo? Mas também é importante cuidarmos de nós, para que o espelho mostre, como tu dizer, a satisfação.
Não posso ir embora sem citar uma frase do teu conto. “(…)estou a explorar na primeira pessoa a diferença entre estar ocupado e ser produtiva.”
Reflexão fascinante.
Um enorme beijinho
Ser free lancer é uma luta diária, mas a compensação é muito boa! E na vida não se tem nada sem esforço. Obrigada pela tua vista e sê sempre bem-vinda! Um beijinho.