Salve-se, quem puder!

  • Bom dia! Tem uma moeda para me dar?
  • Bom dia! Lamento, mas não tenho moedas. – Respondi e virei a cara para o que estava a fazer: pousei a mochila anteriormente colocada no banco do carro no chão do mesmo a fim de disfarçar a sua existência. Agarrei na minha carteira e no saco de compras que me tinha lembrado de trazer de casa nessa manhã em que saí bem cedo para a aula das 8h. Eram 9h30 da manhã e já estava com o carro estacionado mesmo à porta do supermercado, privilégio raro. Pensei para os meus botões que por uma vez o improvável abonava a meu favor. Estacionar à porta iria poupar-me alguns minutos úteis a tantas outras coisas que tenho sempre em mente fazer.

De carteira e saco das compras em punho, saio do carro e assusto-me por ainda ter ali em pé ao meu lado o mesmo senhor que me volta a pedir: 

  • Tem uma moeda para me dar?
  • Eu disse-lhe: não tenho moedas.
  • Se a senhora tivesse uma moeda, eu comprava qualquer coisa para comer…
  • Compreendo, mas não tenho moedas!
  • Mas, ali no café do supermercado, pode pagar com multibanco. Eu bebo um galão e como uma sandes e a senhora só paga 1,90€.

Nesse instante, olho para o meu interlocutor com olhos de sentir. Trazia roupa suja maior do que a medida. Os cabelos desgrenhados escondiam-se debaixo de um gorro que em nada rimava com a restante vestimenta. Tudo isto num corpo de sessenta e tal, setenta anos cansados. Qual seria o percurso deste senhor que deveria, por esta altura, estar a viver pacatamente? Porém, a aparência não fazia jus ao límpido discurso. Incomodada pela necessidade deste velho homem, aceitei.

  • Vamos então.
  • Obrigada, menina. É só um galão e uma sandes.
  • Com certeza.

Chegámos ao café do supermercado e aguardámos na fila. Não gosto de vir a este sítio a não ser beber café por causa do lento serviço que têm… mas desta vez teria de ter paciência. Não era para mim. Era para alguém que precisava de comer. E enquanto a minha mente obcecada pelo tempo divagava, pensei: eu venho comprar comida para um almoço cuja receita gostava de experimentar hoje. Tenho comida em casa, mas dou-me ao luxo de escolher o que me apetece. Este senhor conseguiu alguém que lhe pagasse o pequeno-almoço. Quando será que volta a comer novamente?

  • Olhe, se o senhor quiser mais alguma coisa para além do galão e da sandes, um salgado por exemplo, peça também.
  • Quer que eu peça um salgado?
  • Se lhe apetecer, pode pedir.
  • Então vou pedir um rissol…
  • O que quiser.
  • Ah não! Vou antes pedir um pastel de bacalhau que gosto mais.

Olhei para dentro dos olhos dele para o que me ouvisse – o que quiser, mas não me leve a pensar outra vez em toda esta situação, por favor – pensei para mim respondendo apenas:

  • O que quiser.
  • Obrigada.

Chega à nossa vez. Eu faço-lhe sinal com o queixo para pedir. Pago a conta e despeço-me com a distância de quem já está demasiado sensibilizado e encurta as palavras e os gestos para não denunciar emoções.

  • Obrigada, menina. Muitas felicidades para si e para a sua família.
  • Obrigada.

Ainda com o pensamento em tantas pessoas que sofrem de fome e na infelicidade que deve ser ter ninguém, sou interrompida por uma senhora.

  • Bom dia! A menina desculpe, eu vi que pagou o pequeno-almoço àquele senhor, não foi.
  • Se a senhora viu, sabe.
  • Sim, vi. Pois bem, não lhe volte a dar nada.
  • Desculpe! Como assim?
  • Desculpe-me a mim por lhe vir dizer isto, mas aquele senhor tem muito dinheiro, mas não o quer gastar. Aquele senhor mora perto de mim, ele até vem sempre no mesmo autocarro que eu também costumo apanhar, é dono de imensas propriedades das quais recebe renda, mas faz-se de coitadinho porque não quer gastar o dinheiro dele. Por isso digo para não voltar a pagar-lhe nada.

Estupefacta, fiquei sem resposta. A fim de preencher a minha reação, a senhora repete:

  • Desculpe vir dizer-lhe isto, mas custou-me vê-la a ser enganada.
  • Nao peça desculpa. Eu é que agradeço por me estar a alertar. Obrigada.

Ainda hoje não sei o que senti, a não ser um grande frio na barriga. Não me apeteceu mais olhar nem para o homem, que comia tranquilamente alapado numa das cadeiras daquela esplanada interior, nem para a mulher, sentada duas mesas mais afastada.
Não sei se fiquei contente, se triste, sei que me obrigaram a focar-me no que é importante: nas minhas compras, na minha comida, na minha barriga.

Lamento muito o sofrimento que existe, não suporto sequer o pouco que consigo imaginar, mas não serei eu, de certeza absoluta, a salvar o mundo porque, na verdade, inúmeras vezes, ainda preciso que me salvem a mim!

Photo by Nicole Pearce on Unsplash

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