N.
O que fazias?
Fazia exatamente o que faço hoje, sou jurista! A minha mudança não foi ou é profissional! A minha mudança de vida ocorreu no campo amoroso.
Sou da geração do “ We went from school to a job to a wife to instant parenthood…”, e assim foi! Excelente aluno, bom miúdo, generoso, bom profissional, portanto era socialmente previsível o preenchimento das outras duas condições: casar e ter filhos!!
E assim foi, duas filhas fantásticas, a razão pela qual achei que deveria “morrer” e “ renascer”.
E durante esse período via a vida passar e escondia-me, ou tentava passar por entre os pingos da chuva, a tentar negar uma realidade que a muitos pareceria óbvia. Este arrastar pela vida era tão somente alegrado pelas minhas pequenas! Até ao dia em que percebi que por elas, como exemplo para elas, não me podia continuar a arrastar pela vida, sequer usar máscaras ou esconder-me!
O que fazes agora?
Agora vivo, tal como qualquer ser humano com os altos e baixos do dia a dia.
Não tenho necessidade de erguer bandeiras ou de gritar aos sete ventos a minha orientação sexual, mas deixei de ter vergonha de a esconder. Vivo mais leve, com mais alegria e autenticidade! Sem necessidade de perfeição, com a consciência de que há dias que sou mais perfeito que outros.
Qual foi o primeiro sintoma da vontade de mudança?
A dúvida! Foi não ter certeza onde pertencia. Se é certo que o conforto de uma família me deixava tranquilo, também é certo que a curiosidade pelo sexo masculino aumentava e me atormentava. Está dúvida levou-me a ser honesto com quem de direito, e a “deixar” a família para perceber quem era e o que queria!
Seguiu- se a busca por auxílio, recurso a terapia e afins até perceber com toda a certeza qual o caminho que eu queria traçar e os trilhos que ia seguir.
O que te impulsionou a passares à ação?
Antes de qualquer coisa: as minhas filhas, pode parecer contraditório e muitos não entenderão, mas que pai é aquele que ensina os filhos a viver disfarçados, envergonhados?! E foi isso que me fez dar o primeiro passo… o querer ser exemplo! Depois o respeito pela mãe das minhas filhas, que tinha o direito a ser feliz e certamente não o seria na sua plenitude comigo!
Por fim, o cansaço que para mim foi uma força motriz para avançar. Quando estamos muito cansados tomamos decisões que parecem loucas, mas são acertadas.
Tem sido fácil? Quais têm sido os maiores desafios?
Tem sido bom! Desafiante! Os desafios neste caso, e que foi em mim sempre bem controlado, foi não querer de repente viver tudo de forma repentina, ou seja, por não ter vivido as coisas naquela altura seria expectável que as quisesse viver agora. E tão fácil que é hoje em dia marcar encontros, ter ilusões de romance, enganar e ser enganado em universos paralelos que são somente virtuais. O maior desafio é exatamente ser fiel aos princípios pelos quais me regia enquanto heterossexual! E não querer agir que nem um teenager louco, situação que seria além de outras coisa vá… ridícula!
O que procuras?
Viver com dignidade! Com respeito por todos e agir de forma a poder ser respeitado.
Procuro poder ser mais feliz a cada dia, sempre com a convicção que nenhum estado de espírito é constante, portanto se conseguir ser totalmente feliz meia dúzia de horas por dia já é excelente.
Quero ser ou continuar a ser bom pai, a dar exemplo de respeito, de alguma coragem, de ser verdadeiro com os outros e connosco.
Conforto, não material, mas conforto nos abraços dos amigos, numa sopa alentejana, um copo de vinho partilhado a uma conversa interessante, coisas tão pequeninas e que parecem tão irrelevantes mas que nos confortam e nos dão ânimo para dar mais uns passos!
Já encontraste?
Já! Sou um sortudo!! Já encontrei amor! Já escolhi os amigos que são realmente amigos e que merecem que eu seja amigo! Já encontrei a sopa alentejana! Mas tendo já encontrado aquilo que são os pilares para este recomeço, tenho a consciência e abertura para saber que há sempre algo novo a encontrar, mais amigos, mais conversas, mais coragem, mais força!
Arrependeste-te em algum momento?
Nunca!! Como não foi um “processo” para o qual me tenha atirado de cabeça, mas ao invés, foi precedido de um período de reflexão, de descoberta de verdades, de investimento em saber o que queria, foi uma mudança bem “amadurecida”. E nem com os contratempos que a vida nos apresenta, nunca senti arrependimento. Cada queda sempre foi encarada como uma lição e a ilação que sempre retirei é que para a próxima correria melhor de certeza… e tem corrido!