O rapaz do passo apressado

 Decidi permanecer no carro a ler enquanto aguardava a hora da aula. Peguei no livro e antes de me deixar levar para um mundo imaginário, vagueei deliberadamente pelos mundos que passavam na minha frente. Reparei, primeiramente, num casal jovem que trocava promessas de amor infinitas num banco de jardim. Foi a quietude dos dois em um que me chamou à atenção. Enquanto o meu olhar se desviava noutra direção aleatória, uma mancha vermelha irrompeu. Era a cor do casaco impermeável de um rapaz de passo acelerado. Sem pousar num alvo preciso, o meu pensamento deambulou pelas diferentes maneiras das pessoas viverem as suas vidas, como usam o seu tempo, como caminham… Uns ultrapassam os momentos a alta velocidade, outros, pelo contrário, assistem ao passar de cada segundo.  E à mesma velocidade que estas considerações desfilavam na minha mente, o meu olhar deteve-se num outro casal que passeava com as suas duas pequenas crianças. Invejei altamente a pressa que não tinham. 

De curiosidade saciada , resolvi mergulhar na leitura do meu livro. A história estava empolgante. Numa terra longínqua, num tempo bem antes do nosso, vivia uma família de vários irmãos. O mais novo era o preferido do pai e por essa razão era invejado. Os irmãos decidiram vendê-lo como escravo e explicar ao pai que aquele filho tinha morrido. Parece deprimente, mas garanto que a história dá uma surpreendente volta!

Subitamente, aproveitando um virar de página, levantei os olhos e reconheci o casaco impermeável vermelho do rapaz do passo apressado. O meu olhar cruzou-se com o dele e o rapaz pareceu dirigir-se a mim. Recusando esta possibilidade, afinal não o conhecia de lado nenhum, voltei a mergulhar os olhos no livro, mas desta vez sem intenções de ler. Pelo canto do olho esquerdo, conseguia ver a mancha vermelha aproximar-se. Num espaço de segundos, senti o meu coração bater cada vez mais rápido. Muito discretamente confirmei que as portas do carro estavam devidamente trancadas e senti-me falsamente mais segura. Porém, o que temia, aconteceu. O rapaz do casaco vermelho bateu-me no vidro. 
Levantei a cabeça e mergulhei os meus olhos na face dele à procura de uma identidade. Ele era jovem, uns 20 anos, magro, de lábios secos, pele ressequida, dentes amarelados e um olhar perdido. 
– Desculpe, pode dar-me uma ajuda. 
Tentando disfarçar o meu incómodo, nem o deixei continuar e simplesmente, mais do que o som, fiz questão que notasse a minha linguagem corporal. Abanei a cabeça em sinal de não ter dinheiro. Não creio que tenha sido a minha negação a demovê-lo imediatamente dali, mas sim a minha disfarçada frieza. O rapaz afastou-se com o mesmo passo apressado com que se aproximou, atravessou o jardim e desapareceu no horizonte ao fim de uns minutos.

Fiquei perturbada. A compaixão pelo desnorteio deste jovem rapaz em idade de correr atrás de sonhos em vez de os não ter, a frieza com que recusei ajudar, assim como a invasão da minha tranquilidade deixaram-me a escrever estas palavras.

E enquanto escrevo, o casaco impermeável vermelho está a passar. O casaco apenas porque pude ver que quem o veste está morto e poucos acreditam que possa voltar a viver. Mas pode! 

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